Fernando Betini
Há mais de cem anos (desconsiderando-se, para fins de análise, o período entre 1933 e 1945) o cinema alemão tem demonstrado o seu talento e sua particular sensibilidade no que tange ao aspecto psicológico. E não é de se admirar que uma nação que tenha passado por sucessivos traumas ao longo de quase todo o século XX, tendo que por tantas vezes renascer das cinzas, apegar-se-ia tanto em sua arte, precisamente em seu cinema, à dor, ao mistério, à incerteza, às crises identitárias, aos dramas individuais. Com isso não me refiro somente à cinematografia produzida no próprio país, mas, em um panorama mais geral, ao legado dos grandes cineastas alemães (o que inclui, por exemplo, a obra hollywoodiana de autores como F. W. Murnau, Fritz Lang e Max Ophüls).
Todavia, é curioso notar como, a título de exemplo, o cinema italiano, cuja nação passou por crises análogas durante o mesmo período, tenha se destacado muito mais pelo aspecto social (tanto no período neorrealista quanto no ápice da commedia all’italiana, de Rossellini a Monicelli) do que pelo psicológico. Assim, a hipótese de que a recorrência de narrativas psicológicas no cinema alemão é determinada por condicionantes históricos cai por terra. Além disso, percebe-se que, tal qual ocorre com os italianos à sua própria maneira, a ênfase dos alemães nesse aspecto extrapola o campo textual e o gênero de cada filme, residindo sobretudo na estética de seu cinema, em seu processo produtivo. Ora, como o cinema é uma arte coletiva, esta intromissão secular de obras sobre o sofrimento e a profundidade da psique humana no cinema alemão não poderia ser uma mera tendência, algo tão efêmero e comercial, mas uma das sínteses de um longo diálogo entre múltiplo autores.
Nesse sentido, Phoenix (2014), dirigida pelo notável Christian Petzold (que,malgrado muitos críticos-cinéfilos por aí desejem te convencer do contrário, não é um gênio do cinema contemporâneo, mas um diretor competente), tem algum interesse em contribuir para este diálogo, sobretudo em seu texto, mas também em sua sutil mise-èn-scene, apesar de alguns desvios. De qualquer modo, trata-se, sem dúvidas, de uma das portas para adentrar a filmografia de Petzold, bem como paraapreciar a destreza dramática de Nina Hoss. Por isso, desafio-me a analisá-lo na seguinte resenha.
Eis, portanto, uma amostra de seu enredo:
Uma mulher dirige um carro no meio da noite, até ser parada por três soldados estadunidenses na entrada de uma ponte. Inicialmente, a câmera a acompanha do assento de trás, dando a impressão de que ela estava sozinha. Ao ser parada pelos oficiais, no entanto, um novo plano nos revela que a mulher estava acompanhada por uma outra pessoa, que estava com a face coberta por ataduras e manchada de sangue. A motorista mostra alguns documentos a um dos soldados, o qual, após questioná-la sobre sua companheira, é informado de que ela veio de um campo de concentração. Não obstante, o oficial alega que precisa ver o seu rosto, após o que a pobre sobrevivente começa a lentamente tirar os curativos que lhe cobriam o rosto. Corta para a reação do soldado, que pede desculpas e deixa as duas mulheres passarem.
A partir de então, passamos a acompanhar a trajetória desta sobrevivente do Holocausto, interpretada pela ótima Nina Hoss, cujo nome é Nelly. No dia seguinte ao episódio da ponte, ela acorda em um hospital, onde nos é revelado que os seus ferimentos vieram de um tiro. Ademais, sua amiga Lene (a motorista da primeira cena) a informa de que toda a sua família foi assassinada nos campos de concentração nazistas. Enquanto estava internada, Nelly passa por uma cirurgia de reconstrução facial, antes da qual ela expressa o seu desejo de se parecer exatamente como sua forma antiga, malgrado o cirurgião responsável não o recomendar. Durante sua recuperação, Nelly sonha com o seu marido, o qual ela não via desde que fora presa; na cena seguinte, Lene descobre em um cartório um documento comprovando que Johannes, marido de Nelly, havia se divorciado dela.
Após receber alta, já sem as ataduras, Nelly retorna com Lene para Berlim, e lá visita sua antiga casa, que estava em ruínas. Enquanto perambulava pelos escombros, através de um espelho estilhaçado, ela enxerga a sua nova face, e expressa a Lene seu desapontamento, pois não se parecia nada com seu antigo “eu”. As duas amigas então alugam um apartamento na capital alemã, após o que Lene diz à Nelly que elas deveriam em breve receber um visto para a Palestina, onde ajudariam a fundar um Estado judeu e viveriam em segurança. Nelly, contudo, começa a vagar pelas ruas de Berlim, em busca de seu antigo marido. Ao saber disso, Lene a exorta a parar de procurar por Johannes, revelando que ele a havia delatado para os nazistas, causando sua prisão. Mas Nelly, recusando-se a acreditar em tamanha traição, continua a buscar seu marido, eventualmente o avistando em uma boate chamada “Phoenix”. Ele, apesar de não a reconhecer, nota a sua semelhança para com sua antiga esposa, que ele presumia estar morta, e então propõe a Nelly que, caso ela conseguisse convencer os antigos amigos do casal de que era ela mesma, os dois poderiam dividir a herança da falecida. Optando por não revelar sua verdadeira identidade (apresentando-se a ele como Esther), Nelly começa a colaborar com Johannes para descobrir se ele realmente a havia traído.
[A partir dos próximos parágrafos, a seguinte análise pode conter SPOILERS indesejados do filme analisado, bem como dos filmes Um Corpo que Cai (1958) e O Casamento de Maria Braun (1979). Portanto, caso tenha interesse em assistir à obra resenhada, ou aos demais longas mencionados, recomendo que o faça antes de ler o restante do texto].
Um dos pontos de particular interesse no filme de Petzold é o contraste entre o seu discurso, que abrange o caos da experiência alemã do pós-guerra, e sua forma, sempre tão sóbria, contida, beirando ao minimalismo estético. Poder-se-ia afirmar, com isso, que a construção narrativa se opera de maneira demasiadamente lenta, o que não seria ao todo errôneo. Nos primeiros 30 minutos, principalmente, o movimento do filme é interrompido por determinadas pausas expositivas, muitas das quais poderiam ter sido evitadas por meio de soluções mais sofisticadas. Um exemplo penoso disso é toda a sequência com Lene no cartório. Tudo naquelas duas cenas consecutivas foi inserido com o mero intuito de nos expor duas informações, quais sejam, que a familiar de Nelly, Esther, havia morrido, e que Johannes havia se divorciado de Nelly ainda em 1944; não há, por outro lado, qualquer tipo de construção dramática, sendo o único diálogo artificialmente embutido para satisfazer o objetivo expositivo.
Malgrado esta deficiência, a sutileza da construção da trajetória psicológica de Nelly, desde a negação de seu novo eu e da traição de seu marido até a aceitação implícita de cumplicidade não só de Johannes, mas de todos aqueles que a conheciam, quando contraposta por Petzold e Hoss ao peso da História, é o grande trunfo do filme, a ponte dramática que liga, dialeticamente, o discurso do trauma coletivo à forma individualista. A transformação de Nelly ao longo do filme é a da Alemanha do pós-guerra, paradoxo este gramaticalmente intermediado pelo mito da fênix. Não que esta conexão seja realizada de forma impecável, posto que Christian Petzold ainda depende de muitas de suas referências artísticas, sobretudo Hitchcock, mas é habilidosa o suficiente para elevar o filme de um mero simulacro alemão de Um Corpo que Cai (1958) a uma obra pertinente para o diálogo proposto
na introdução do presente texto.
Ainda assim, é curioso notar a semelhança de Phoenix (2014) ao legado cinematográfico que o precedeu. Não obstante a similaridade, destacada por muitos críticos, da narrativa do filme à obra-prima hitchcockiana (não pela similitude em si própria, mas pelo fato de Phoenix (2014) constituir justamente a inversão do roteirode Um Corpo que Cai (1958), abstraindo-se disso, por óbvio, a diferença de cenários), também é válido destacar a convergência de aspectos temáticos do longa com a obra de outros diretores alemães, em especial Fassbinder em O Casamento de Maria Braun (1979). Tanto em um filme como no outro, acompanhamos a jornada de uma mulher alemã que tem que reconstruir sua vida e redescobrir sua identidade na Alemanha do pós-guerra. Além disso, tanto Nelly quanto Maria Braun entram em conflito em torno do destino de seus maridos. Mas a semelhança mais fascinante entre os dois filmes é, sem espaço para dúvida, o diálogo em torno da condição feminina, sendo este aspecto, em Phoenix (2014), responsável por contribuir para a cumplicidade denunciada no final do filme.
As divergências entre as duas obras, por outro lado, são notáveis tanto no plano textual quanto no plano estético. No textual, a diferença mais evidente reside no fato de Maria Braun, ao contrário de Nelly, não ser judia, e por isso não ter passado por um campo de concentração; mas a diferença mais sutil, e por isso mesmo mais interessante, concerne ao destino final das duas personagens. Após “morrer” e, ao final do filme, renascer, Nelly abandona Johannes e, ao que tudo indica, enfim seria capaz de viver novamente; Maria Braun, por seu turno, morre quando seu marido é levado à guerra, renasce por meio de sua ascensão financeira no pós-guerra e, quando seu marido retorna e a Alemanha conquista a Copa do Mundo, morre novamente, tornando-a não uma representação de sua nação apoiada dramaticamente por um mito que incorpora aquele período histórico, mas a própria personificação mítica daquela época. No que diz respeito ao plano estético, a divergência mora no descompasso entre o estilo minimalista de Petzold e a ótica mais provocativa de Fassbinder. Assim, nota-se que Phoenix (2014) não se desprende completamente da tradição que a precedeu, mas também, felizmente, não se contenta em ser uma enfadonha repetição do passado.
Sem embargo, por conta de sua abordagem contida e melodramática, a câmera de Petzold confere muito da força das imagens produzidas a Nina Hoss. Por isso, pode-se afirmar que a atriz possui um grande mérito para a eficácia do filme. Todavia, sua atuação não é, por si própria, capaz de ofuscar a admiração do espectador perante o olhar aguçado de Petzold para a fotografia, precipuamente no que se refere a sua capacidade de formular imagens fortes e poéticas. Um exemplodisso é o plano memorável de Nelly nos escombros de sua antiga casa, olhando seu reflexo através de um espelho quebrado.
É nessa convergência entre a atuação de Hoss, a mise-èn-scene e a montagem que se desenrola a cena final, qual seja, a impactante performance de “Speak Low”, de Kurt Weill, após a qual Nelly se liberta de seu passado. Tendo em vista o seu viés absolutamente sintético, pois é o momento no qual todos os dilemas propostos ao longo do filme culminam, não me admiraria se Petzold tivesse escrito o roteiro de Phoenix (2014) exclusivamente a partir dela. Decerto, nas mãos de algum diretor metido a inteligente, como Christopher Nolan, esta seria a primeira cena do filme, que então prosseguiria em uma narrativa não-linear, arruinando todo o suspense; felizmente, no entanto, estamos falando aqui de um cineasta de verdade.
Contudo, ponderando acerca de sua motivação, há de se admitir que é plenamente possível que este encerramento tenha sido filmado com a intenção de dar alguns prêmios a Nina Hoss, o que seria imperdoável. Mas a dinâmica audiovisual da cena é executada de tal forma que despertou minha admiração, de modo que não acredito em tal hipótese. Principalmente porque sua mise-èn-scene e sua montagem não é, em momento algum, manipulativa. A decupagem da cena consiste na simples alternância entre três planos: um plano aberto com todos os amigos do casal e dois planos médios com Johannes e Nelly, respectivamente. A única quebra de protocolo ocorre quando Johannes enxerga o código de identificação de Nelly,
onde o montador adiciona um plano-detalhe mostrando o ponto de vista do pianista, o que é plenamente justificável. Mas mesmo no ápice dramático da cena, quando Johannes finalmente descobre a verdade sobre Nelly, e ela, por sua vez, encara seu ex-marido como quem havia enfim aceitado a traição infligida por ele, Petzold e o montador não apelam para um outro plano, como um “close” na expressão de um dos dois ou de alguns dos convidados, de modo a manipular artificialmente os sentimentos do público. Não é proposta uma ruptura com a estética usada ao longo de todo o filme apenas para chamar a atenção, mas é justamente pela fidelidade a este modelo construído ao longo de sua progressão visual e narrativa, atrelada ao condensamento de todos os diálogos iniciados nas cenas anteriores, que a sequência final de Phoenix (2014) configura-se como a síntese desta construção, como o momento em que enxergamos a mise-èn-scene do filme em suaconcretude. Tal como dizia Godard: “Muito brilho me incomoda e me cega; prefiro o agradável e o verdadeiro ao surpreendente e maravilhoso”. É, pois, na simplicidade e no apego às qualidades formais que esta cena (e o filme como um todo) engendra a sua beleza.
