Sem Despedidas: Um Lampejo no Mundo das Sombras

Karolina Zanin Vieira

Árvores pretas que se assemelham a pessoas. Neve esparsa. E uma maré que transborda tudo aquilo que estava enterrado.

É assim que se inicia o brilhante livro “Sem Despedidas” de Han Kang. Com um sonho, uma imagem, um símbolo, recorrente.

Os sonhos, projetados pelo nosso inconsciente, são feitos de símbolos. Eles existem para estabelecer uma espécie de comunicação com o “eu consciente”. Carl Jung tinha muito a dizer sobre os sonhos recorrentes. Muitas vezes, por trás deles, estão aspectos reprimidos de uma personalidade, sua sombra.

Quem nos acompanha nesse lampejo no mundo das sombras, onde consciência e inconsciência se misturam, é a escritora Kyung-ha, uma espectadora da vida e da morte. Os últimos quatro anos da personagem haviam sido repletos de despedidas e de sofrimentos que se materializam em forma de uma dor aguda no estômago. O corpo é uma temática muito relevante na obra de Han Kang. A autora é capaz de descrever como ninguém o descolamento da pessoa doente, em um mundo feito para os saudáveis.

Não é apenas Kyung-ha que nos conta a sua história, mas também o seu corpo. O ocidente, tão racionalizado, costuma acreditar que o pensamento é responsável por produzir todos os entendimentos. No entanto, a verdade é que a primitividade do nosso corpo revela os aspectos mais complexos sobre nós. A doença pode alertar sobre algo que está errado e exigir mudança, melhora e progresso. Mas, ao mesmo tempo, ela degrada e isola.

A solidão é mais um aspecto degradante da história, que enfatiza a necessidade do “outro” para que o “eu” continue sendo. E, assim, quando já aceitamos que a história será centrada no isolado universo interior de Kyung-ha, subitamente, a personagem é presenteada com um último motivo para continuar vivendo, o que transfere a narrativa
para o “outro”.

Inseon, sua grande amiga, sofre um acidente e se encontra em um hospital gravemente ferida. Por isso, precisa que Kyung-ha alimente seu pássaro, que já está há dois dias sem comer. Nesse momento, iremos segui-la em sua dura viagem, repleta de tempestade e neve, até uma vila isolada na ilha de Jeju. Kyung-ha será acompanhada pelas memórias dessa amizade durante grande parte de sua viagem. Sua amiga é uma fotógrafa e documentarista. Com a doença de sua mãe, mudou-se para a ilha de Jeju, onde passou a exercer a profissão de marceneira. E continuou naquele local, mesmo após a morte da mãe. As duas amigas possuem grandes diferenças. Enquanto Kyung-ha é inerte em sua melancolia e reflexão, Inseon é prática, precisa e radiante. Kyung-ha apenas observa o movimento da vida. Inseon participa de cada momento na terra.

A esse ponto, já temos material suficiente para constatar o quão inovadora é a escrita de Han Kang. Toda a prosa da autora é repleta de poesia. Sua capacidade de descrever o inefável só pode ser equiparada à magia. Posso dizer que, nesse livro, fui capaz de sentir tudo o que estava escrito.

Cada palavra é uma nova sensação já vivida. A capacidade de Han Kang de conectar pessoas que vivem em extremos opostos do globo terrestre, através de sensações e de sinestesia, demonstra que todos nós, leitores, temos algo muito valioso em comum: nossa humanidade.

O ambiente externo e interno dos personagens se comunicam constantemente. Nesse livro, a natureza é uma espectadora ruidosa dos acontecimentos e, sobretudo, da violência.

Durante a viagem, Kyung-ha relembra de inúmeros momentos com Inseon. Entre eles, há um episódio em que a amiga relata sobre o dia em que fugiu de casa. Ela conta o quão frágil e fraca sua mãe parecia e como isso lhe gerava um ódio gigantesco. Entretanto, a relação das duas é permeada de um amor intenso e que se multiplica nos últimos anos
da vida de sua mãe, a qual passa a sofrer com uma demência. Han Kang é uma escritora verdadeira e firme. Ela demonstra como a dor e, por vezes, o ódio integram o amor.

Ao chegar na casa da amiga, a história toma um rumo totalmente diferente. Não somos capazes de distinguir o que é sonho e o que é a realidade, o que é a vida e o que é a morte. Tais estados diametralmente opostos entrelaçam-se intimamente para contar uma história. O massacre de Jeju.

Como um sonho, o livro é repleto de sugestões e falsas impressões. Aquilo que se tem, subitamente, se transforma. E esse movimento não ocorre somente com as imagens, tão bem descritas pela escrita fotográfica da Han Kang, mas também com o desenrolar da história. O foco da narrativa se altera mais uma vez. Agora, o passado emerge, inundando o presente. Conheceremos, simultaneamente, a história da família de Inseon e da ilha de Jeju.

A mãe de Inseon, que, no início, era descrita como frágil e fraca, vagarosamente, revela-se como a mulher mais forte da obra, uma sobrevivente em Jeju. Após a Segunda Guerra Mundial, a população desse local realizou uma rebelião contra as eleições agendadas pela “Comissão Temporária das Nações Unidas para a Coreia”, já que eram contrários à divisão do país. Após a rebelião organizada pelo “Partido dos Trabalhadores da Coreia do Sul”, a “Primeira República da Coreia” iniciou uma “campanha de erradicação” das forças rebeldes na área rural de Jeju. Tal “campanha”, na verdade, foi um massacre que culminou no assassinato de quase dez por cento da população local.

Mulheres, crianças, idosos, civis inocentes, ninguém foi perdoado. Por muito tempo, a história de Jeju permaneceu enterrada. Era um motivo de vergonha para a população local, taxada de “rebeldes” e de “comunistas”. Hoje, conhecemos uma Coreia do Sul radiante, feliz, desenvolvida, com um poder suave, sua cultura. Muito parecida com Inseon. Nessa história, conheceremos um pouco mais sobre seu passado obscuro, esquecido, enterrado. Conheceremos um pouco sobre aquela mulher que deu à luz a esta “Coreia do Sul”. Sua mãe, frágil, idosa, fantasma. Coreia.

O mundo atual está habituado com imagens terríveis. Elas são apáticas. Talvez por serem muitas. Talvez por estarem distantes. Muito provavelmente por serem disseminadas nas redes sociais, onde tudo se mistura e tudo se confunde. Mas há uma insensibilidade, uma indiferença com a tragédia e com o absurdo. Em “Sem Despedidas”, tais imagens ganham o espaço que merecem. Elas são passaportes para o passado. Afetam tanto os personagens como os leitores. Assim como Kyung-ha procura desviar os olhos das imagens para aliviar seu desconforto, mas falha, em muitos momentos da minha leitura, eu sentia o ímpeto de fechar o livro, mas não conseguia. Esse é o feitiço da escrita de Han Kang, ela nos lembra o que é a sensibilidade e o que é a empatia. Ela nos faz perceber o quão frágil é ser humano.

Uma das imagens mais marcantes é a foto dos corpos exumados embaixo da pista de decolagem. No canto inferior, havia uma ossada pequena, com uma posição diferente, o corpo estava deitado de lado com os joelhos muito dobrados. Tudo indica que foi enterrado vivo. Durante dez anos, essa imagem assombrou Inseon. Muitas vezes, ela se
encontrava na mesma posição em que o corpo. Acredito que um senso de justiça a tenha tomado. Porque alguém teve a má sorte de morrer dessa forma e ela estava viva? A imitação seria uma forma de sentir o mesmo sofrimento, de restabelecer o equilíbrio. A mediania. Toda sombra é um desequilíbrio, uma injustiça. O sol não é o mesmo para todos. Mas esse é um desequilíbrio irreversível.

A escrita de Han Kang é fragmentada e não linear. Arrisco dizer que para a compreensão integral e cronológica de todos os acontecimentos é necessária uma releitura. As memórias surgem soltas, de repente, assim como ocorre no pensamento humano.

A vida de Inseon foi extremamente marcada pelo massacre. Esse trauma, de certa forma, uniu os seus pais, que compartilharam uma mesma dor.

Seu pai, quando jovem, foi aprisionado e torturado. Ele conseguiu encontrar e enterrar o corpo do avô da protagonista. Mas nunca encontrou seus irmãos. A irmã favorita do pai era a mais nova, um bebê de colo. Ele acreditava que ela havia falecido no fuzilamento das crianças na praia de areia branca, mas nunca pôde ter essa certeza. Há uma cena em que ele encontra uma testemunha do fuzilamento e pergunta sobre sua irmã. Ela não se lembrava.

Já a mãe carregava uma culpa enorme, “O seu cabelo está estranho” foi a última coisa que disse ao seu irmão. Depois disso, nunca mais o viu. Ele foi um dos desaparecidos de Daegu. Ela nunca duvidara de que ele havia morrido. Até que, muito tempo depois, ouviu um boato de que um menino foi capaz de fugir. Inseon acredita que esse foi o momento que ocasionou a “ruptura” de sua mãe. A dúvida, a despedida interrompida. Tudo isso a enlouqueceu.

A humanidade é feita de encontros e despedidas. E, por termos consciência de nossa finitude, cada dia vivido é uma parte do fim. De certa forma, um primeiro encontro também é um primeiro adeus. A guerra não só interrompe as despedidas, mas também as eterniza.

Quando algo atravessa essa linha invisível que separa a vida da morte, não há mais encontros, ou despedidas. Não há mais nada. Entendemos isso desde cedo, quando enterramos, pela primeira vez, algum pássaro de estimação. Sabemos que ele não voltará.

Mas imagine um mundo em que ele possa voltar. Viveríamos em uma eterna expectativa angustiante, em um eterno desequilíbrio. Os pássaros não voltam. Para seguir em frente, é preciso enterrá-los na terra e libertá-los na alma.

Carl Jung não estudou somente o inconsciente individual, mas também o coletivo. Grande parte dos traumas são compartilhados por toda uma sociedade. O que não é diferente em Jeju. O brilhantismo de Han Kang está em partir de uma sombra interior e chegar em uma escuridão coletiva. Mostrando que cada árvore preta integra uma floresta negra. Ao dar voz ao que foi reprimido, “Sem Despedidas” se transforma na luz no fundo do aquário escuro.

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