Laura Thereza Mique
Já passei muitos natais com a minha dona, mas este é diferente. Antigamente ela usava roupas masculinas, terno, gravata e sapato social. Hoje, ela está de vestido. Antes, ela me dizia que deveria chamá-la de Pedro, mas sempre soube que o nome dela era Pietra.
Ano passado usou uma saia pela primeira vez no Natal. Eu me lembro dos gritos, dos soluços, dos dedos apontando, do olhar julgador da nossa “família”. Assustei-me com o barulho dos copos estilhaçando no chão. No ano novo nós não estávamos mais morando lá. Foi o primeiro feriado em que passamos só eu e ela.
Nos primeiros meses, foi difícil vir para este apartamento tão pequeno, demorou muito para nos acostumarmos com o barulho que vinha de fora, mas principalmente com os ecos daquele natal. A solidão nos cortava.
Na páscoa, já havíamos feito amigos, lembro disso porque eu ganhei chocolates caninos para celebrar com meus novos colegas animais.
No dia 12 de junho, fiquei presa fora do quarto enquanto ela conversava muito alto com seu futuro namorado. Foi aí que conheci minha futura companheira:a gata siamesa dele, que se apaixonou por mim, mesmo sendo só um vira-lata.
Em 7 de setembro, ela me levou para uma manifestação em prol da liberdade do país, mas muito além disso, foi então que conquistou sua independência como mulher brasileira.
No halloween, não consegui pegar nenhum doce na mesa, as crianças do prédio roubaram todos eles de mim. Mas mesmo assim ela ainda comprou uma bala especial e me fantasiou de lobisomem e siamesa de vampira e, juntos, ajudamos a assustar todas as crianças.
Neste natal, o coração antes despedaçado foi reconstituído. O apartamento que antes parecia pequeno agora é enorme. Cabem todos os nossos amigos e amores. A minúscula mesa de centro abrigou uma ceia digna de comercial de margarina. Nossa árvore, repleta de presentes, me rendeu um petisco especial -além de uns pedaços roubados do chester-. Dessa vez nenhum copo caiu no chão.
Sei que ela ainda lembra do ano passado, mas agora não passa mais as noites chorando sozinha. Ela tem a mim e a todos os nossos amigos humanos e felinos para chamar de família, e nós estaremos lá por ela a cada natal que vier.