Observação: o presente texto foi escrito tendo como referência a peça de Wicked, e não os
filmes.
Por J. C. L.
Ao assistir Wicked, aqueles interessados em analisar a fundo aquilo que o musical tem a oferecer dificilmente podem ignorar a pergunta que recai sobre a plateia após o segundo ato da peça: seria Glinda a grande vilã de Wicked?
Em discussões a respeito da obra, muito se debate sobre o que Defying Gravity representa no arco de Glinda: há quem velozmente atribua a Glinda um quê de vilã ao recusar-se a romper com o sistema de Oz, assim como existem aqueles que observam que, do ponto de vista individual, Glinda não tinha razões para deixar o mundo que conhecia para trás, mormente quando, diferentemente de Elphaba, seu poder não irrompe de uma força interior a seu controle, mas sim da maneira na qual é percebida pela sociedade, o que lhe permite navegar com facilidade o status quo e alcançar aquilo que deseja. Essa segunda análise nos leva, por conseguinte, à seguinte conclusão: se Glinda não vai com Elphaba porque tal atitude significaria abandonar o seu poder, então por certo Glinda tem a intenção de utilizá-lo. A pergunta é: para quê? Afirmar que após Defying Gravity Glinda tornou-se uma agente anti-regime disfarçada e determinada a quebrar o sistema por dentro seria ignorar a progressãonarrativa da história e a própria letra da canção mencionada. “Espero que você esteja feliz após terprejudicado para sempre a sua causa”, Glinda diz a Elphaba. Combater a opressão sistêmica aos animais de Oz é, para Glinda, uma causa de Elphaba, e não uma luta coletiva ou, no mínimo, que lhe diga respeito.
Naquele momento, não há em Glinda sequer um espírito reformista. Enquanto Elphaba representa a ruptura, Glinda é a imagem da crença cega no status quo. Enquanto Elphaba arrisca a sua vida na tentativa de libertar os animais, Glinda luta para se convencer de que está feliz e satisfeita em Thank Goodness, mas jamais cogita utilizar de sua posição para trabalhar minimamente no sentido de dirimir a crueldade do regime. Glinda está mais disposta a utilizar sua energia e influência para se convencer de que vive em um mundo bom do que a empregá-la para pensar em maneiras de consertar as falhas que tão enfaticamente tenta ignorar.
Logo, a resposta é evidente: em Defying Gravity, ao escolher ficar, Glinda não escolhe sequer a ideia de que talvez seja possível mudar o sistema por dentro; não: ela escolhe o conforto, a segurança e o louvor de seus pares, mesmo que isso signifique dar às costas não só à crueldade ao seu redor, mas também à amiga que disse amar.
Conforme a história progride, o contraste entre Glinda e Elphaba torna-se cada vez mais evidente e, ao final, somos deixados com a mesma sensação que sentimos em Defying Gravity: será que Glinda está mesmo caminhando na direção da mudança? Assim como Defying Gravity cria expectativas acerca desse potencial de transformação, o qual logo é sufocado em Thank Goodness, também o faz o final da peça. O máximo que vemos de uma postura ativa em Glinda é quando confronta o Mágico e a Madame Morrible, e, como essa cena ocorre quando Glinda está em uma inegável posição de poder — isto é, em posse de informações plausivelmente capazes de deslegitimar o regime —, nós, a audiência, dificilmente somos convencidos de que estamos diante de um grande sacrifício da personagem, ou da sua própria versão de Defying Gravity, em que decide abraçar o que considera moralmente correto mesmo que isso custe seu conforto.
Ainda, ao assumir o poder, Glinda indubitavelmente segue alimentando a mesma lógica em que o regime sempre operou: mentiras e manipulação. Embora se possa argumentar que exporsecamente ao povo a verdade por trás do Mágico e de Elphaba de fato levaria a um nível de indesejado de instabilidade em Oz, a ausência de qualquer mínimo esforço para trazer a verdade à tona para os cidadãos novamente reforça que Glinda mais uma vez escolheu o conforto, a segurança de manter viva uma narrativa que sempre a favoreceu, preterindo, por conseguinte, o estabelecimento de um governo
por fim livre da propaganda totalitária e aberto ao povo. Somos apresentados a uma Glinda que toma para si não somente a incumbência de agir de modo estratégico para assegurar a paz em Oz, mas também que atribui a si mesma a palavra final sobre o que deve ou não ser de conhecimento dos
cidadãos, mesmo que isso signifique deixar às escuras o cerne da política da nação. Assim, Glinda assume o poder, segue manipulando o povo, e, pelo menos no intervalo de tempo que nos é apresentado, não vocaliza eventual intenção de mudar o modo como são tratados os animais.
No fim, Wicked não é uma história sobre uma revolucionária que decide buscar a transformação por fora do regime e sobre uma reformista que enxerga no sistema a única possibilidade de mudança. Em verdade, Wicked é sobre uma vítima de um sistema opressor que, em uma tentativa talvez pouco estratégica, mas visceral, entende não mais ser capaz de tolerar a crueldade, e sobre alguém disposta a se manter silente mesmo nos momentos em que poderia ter falado.
Esperar que uma Glinda recém-ingressa na universidade fosse capaz de reformar o regime por si só é pouco real e ignora que, em última instância, seu destino seria semelhante ao de Elphaba caso Glinda houvesse sido suficientemente vocal ao denunciar o sistema, mesmo que o fizesse do ponto de vista interno. Caracterizar Glinda como vilã por não ter ido com Elphaba em Defying Gravity é desconsiderar a complexidade das circunstâncias e os riscos a ela atrelados. Entretanto, é razoável que se esperasse de Glinda uma postura minimamente firme ou proativa conforme a personagem amadurecia e conquistava mais poder.
Então, isso quer dizer que Glinda é a vilã de Wicked? Não necessariamente. Em uma narrativa, o vilão, o antagonista, tradicionalmente ocupa o polo oposto ao protagonista, representando uma oposição direta aos seus desejos e objetivos. Em Wicked, essa contraposição a Elphaba não parte primordialmente de Glinda — cuja atitude concernente às ideias de Elphaba é mais de indiferença que de objeção —, mas sim do Mágico e da Madame Morrible. Entretanto, tal argumento não pode ser utilizado para defender que, no fim, Glinda esteve ao lado de Elphaba na história, pois sua omissão —
que por diversas vezes partiu não do medo ou da manipulação perpetrada pelo regime, mas sim de seu próprio juízo de conveniência — é evidência suficiente para entendermos que o papel de Glinda definitivamente não se aproxima daquele de heroína.