Cecília Gléria Atiê
Bonequinha de Luxo é um dos grandes clássicos do cinema hollywoodiano, sendo o filme pelo qual a grandiosa Audrey Hepburn é lembrada até hoje. Uma grande comédia romântica estreada em 1961, pelo diretor Blake Edwards e baseado em um livro de mesmo nome, escrito por Truman Capote e publicado somente três anos antes. É um filme que inegavelmente passou pelo teste do tempo, apesar de eu acreditar que isso se deu por sua qualidade sublime e por sua quebra de paradigmas do cinema americano. É um filme que foi absolutamente integrado na cultura popular, tendo grande repercussão até hoje, apesar de que essa repercussão se diluiu em solo brasileiro.
Apesar de ter soado levemente condescendente, não quero deixar de transparecer meu amor por esse filme. Bonequinha de Luxo é um romance entre uma acompanhante de luxo e um cortesão pago de uma mulher casada, os dois sendo espécies de prostitutas que o conservadorismo da época queria inegavelmente deixar implícito. Holly Golightly é uma mulher jovem que mora sozinha e é inconveniente com todos os seus vizinhos, achando que todos devem estar a disposição das merabolises dela, enquanto Paul Varjak é o novo morador do prédio de Holly e a nova vítima de seus tormentos, que deixam de ser tormentos muito rápidos ao estabelecerem uma amizade.
Esse filme sempre esteve muito integrado no meu imaginário, pois assisti ele nova com minha mãe e eu, como qualquer garota, fiquei obcecada com as roupas de Holly e como a Hepburn tinha tanta classe e personalidade. Porém, sempre fui muito fora da curva e até hoje carrego o que considero um dos meus maiores defeitos: minha total apatia por romances. Não consigo gostar deles, acho-os chatos e irritantes, então percebam minha surpresa quando fui rever o filme aos 20 e ficar completamente obcecada com ele. Bonequinha de Luxo é um filme que contém tanto charme, tanto coração, tanta esperteza que mesmo depois de 60 anos continua deslumbrando pessoas.
É um filme que te cativa pelo estudo de caráter que faz de Holly, pois é uma mulher que está sempre acompanhada, mas está perpetuamente sozinha. E acompanhamos a dor dela de querer encontrar alguém, porém nunca conseguir, pois nunca consegue se integrar totalmente nos lugares em que habita. Ela fugiu de casa aos 14, fugiu de hollywood aos 18, e está tentando fugir de Nova York também, onde reside. Ela é, assim como a descrevem no filme, uma garota muito sozinha, muito assustada, cuja única companhia é um gato sem nome. A única coisa que ela possuí nessa vida é esse gato, o qual ela não consegue nomear, pois eles só se encontraram um dia por acaso e hoje vivem juntos, não
conseguindo dar um nome pois tanto o gato quanto ela não pertencem a ninguém, nem a um pelo outro, e quanto mais se tenta engaiolar uma coisa selvagem, mais arisco essa coisa fica.
O gato é, claramente, só um símbolo do escapismo emocional de Holly, que não sente que pertence a lugar nenhum e a ninguém. Acho que esse sentimento é facilmente entendível quando entendemos que ela é uma prostituta, algo que o filme fica claramente com medo de lidar. Ao percorrer do filme, vemos ela lidar com homens grotescos e violentos que só usam dela, porém a obra se recusa a vilanizar esses homens, o que eu acho ser um dos maiores defeitos do filme. A Holly é constantemente objetificada por tals homens, que querem por sexo, status, dinheiro, porém a Holly trata isso como se fosse engraçado e se compadece com esses homens. Exemplo claro disso, apesar de ter vários ao decorrer do filme, é a história do passado de Holly, em que ela foi abusada e forçada a entrar em um casamento infantil com apenas 14 anos, com um homem de 50. Ela fugiu desse abuso, mas, ao se reencontrar com seu abusador no meio da história, trata ele com carinho e afeto. Portanto, é um filme que claramente escreve homens em cenário antiéticos e está ciente disso, porém repetidamente se recusa a vilanizar esses homens.
Outro grande defeito que eu não poderia deixar de comentar é um personagem racista que não teve nenhum propósito além de servir como saco de pancada e alívio cômico ao longo do filme. É um ator branco com uma prótese dentária forçando um sotaque para se passar de um asiático estereotipado. Porém, felizmente, esse personagem não se sustentou nem na época de lançamento, sofrendo grandes críticas até na época.
Ainda assim, a obra me conquista pela leveza cômica e pela atuação de Hepburn. Ela domina cada cena com carisma e delicadeza, mas não é apenas sua beleza que nos prende. O que a torna inesquecível é a melancolia discreta que permeia sua performance. Hepburn transmite uma tristeza suave, que nos faz sentir compaixão por sua solidão e fragilidade. Holly é um personagem complexo: amoral, ciente de suas escolhas e das ilegalidades que comete, mas retratada pelo filme como ingênua. O filme é baseado numa fonte muito complexa, pois o autor Truman Capote constrói no livro uma figura fadada à miséria, e o diretor não consegue sustentar uma mulher tão complicada,por isso ele dilui essa complexidade a tornando ingênua. Felizmente, Hepburn resgata a densidade da personagem, oferecendo-nos uma mulher contraditória, lúcida e ao mesmo tempo frágil, que está amplamente ciente de suas ações, porém ainda age como age por dinheiro e companhia.
O romance vem de uma maneira muito igual a todos os romances de prostitutas que existem. Como toda garota, eu já vi o clássico Uma Linda Mulher, porém achei o insuportável, pois a Julia Robert interpreta uma mulher chata sem classe alguma, totalmente alheia ao mundo. Holly está muito ciente de seu lugar no mundo, apesar de perdoar os homens que a colocam nesse lugar, e abusa desse sistema para chegar aonde
quer. O romance vem justamente da pessoa que não quer nada dela, simplesmente se apaixona por Holly por ela ser uma pessoa interessante e divertida e sincera.
O filme espera até o último minuto para fazer o casal ficar juntos, porém era necessário assim. Holly é uma pessoa independente que não pertence a ninguém, e fica tentando fugir da única pessoa que a ama somente porque ela é como é, sem motivos e sem razões. Claro, a Holly vê isso como uma tentativa de a aprisonarem de novo, o que não pode ser feito com coisas selvagens como ela. Porém, ao quase perder seu gato sem nome, ela é obrigada a lidar com o fato de que ela ainda é uma criança presa em seu passado, presa em si mesma, e só a deixando ir e conseguindo se abrir para o amor com outras pessoas, e com seu gato, ela conseguiria sair da gaiola que criou para si mesma.
Bonequinha de Luxo não sobreviveu seis décadas por ser um filme irretocável ou original, mas porque é impossível não se compadecer de uma mulher que não sabe quem é, uma condição quase universal. Para mim, Holly representa minha face mais vulnerável: a parte que sempre se sente deslocada e teme o amor. Contudo, ela enfrenta essa fragilidade com vestidos impecáveis e uma elegância deslumbrante, o que torna mais fácil romantizar a minha própria faceta de humanidade falha.
Holly representa milhões de mulheres de uma maneira sincera e que a mídia raramente consegue representar, principalmente em um filme da década de 60. Bonequinha de Luxo é uma obra que sobrevive mais pela figura inesquecível de Holly Golightly e pela interpretação magistral de Audrey Hepburn do que pela coragem narrativa ou pela coerência crítica do filme. É uma obra contraditória: delicada e superficial, engraçada e
melancólica, encantadora e problemática. Ainda assim, permanece viva porque traduz uma experiência humana universal: a busca por pertencimento em um mundo que constantemente tenta nos aprisionar em rótulos e as pessoas constantemente te usando por motivos egoístas. Talvez por isso tantas pessoas, geração após geração, se vejam em Holly: não como ícone de moda ou romance perfeito, mas como símbolo da solidão, da fuga e da eterna tentativa de encontrar uma pessoa que te ama por você ser quem você é.
Que análise boa!