Evilyn Ramos
Se existem crianças nas ruas causando o terror da cidade, de quem é a culpa?
É essa a indagação com a qual o clássico baiano da década de 30 tem início. Ao abrir
o livro, somos bombardeados, de supetão, por manchetes do Jornal da Tarde (uma espécie de
Choquei, sejamos sinceros), denunciando e armando um circo acerca dos famosos e temidos
Capitães da Areia. Nas notícias, lemos o depoimento de uma mãe, do chefe de polícia, do juiz
de menores, do diretor do reformatório da cidade e de um padre – ainda que nenhum deles
tenha a solução ou assuma responsabilidade pelas crianças ladronas. O grupo, que é
composto por mais de quarenta meninos, estes entre 9 e 16 anos de idade, vive pelas ruas de
Salvador tentando, da melhor forma, sobreviver.
Jorge Amado divide sua história em três grandes partes, porém a leitura se dá de
maneira episódica, como se lêssemos aventuras (que, em sua maioria, são desventuras) uma
de cada vez. O autor, por isso, deliciosamente toma seu tempo e aprofunda seus personagens,
distribuindo o “holofote”. É dessa maneira que conhecemos alguns dos pequenos malandros:
Pedro Bala, o líder com cara de líder; João Grande, pau para toda obra; Gato, o elegante
encantador de moças; Professor, aquele que lê para os amigos e os permite viver outras vidas;
e Sem- Pernas, o melancólico raivoso.
Neste último, é possível perceber sua ânsia de viver, – viver plenamente: com
segurança, com afeto, sem ter que roubar ninguém, sem ter a ameaça do reformatório ou da
polícia sobre seus ombros. Sem-Pernas sempre observa e toma notas de sua realidade como
quem não acredita que aquela é, de fato, sua vida. Traumatizado pelos abusos policiais,
sequer consegue dormir. Essa é uma característica marcante do personagem, considerando
que os outros não gastam tanto tempo nessa reflexão, pois encontram seus escapes. Como é o
caso de Volta-Seca, que afirma incansavelmente que Lampião é seu padrinho. Esse interesse
pelos cangaceiros não é raro entre os meninos: em um trecho, por exemplo, João Grande pede
que Professor leia para ele a mais nova notícia de devastação causada pela gangue. Muito se
diz hoje em dia sobre os benefícios (ou delírios) que se obtém ao romantizar sua própria vida.
Bom, para os Capitães da Areia, ter similaridades com os cangaceiros era isso, era fonte de
identificação e fábrica de autoestima.
Durante sua obra, Amado não pestaneja em narrar palavras duras e cortantes. Não
sente pena do leitor em momento algum, não evita tabus e não foge da crueldade enfrentada
por pessoas, sobretudo crianças, em situação de rua. Escancara a marginalização dos
molequinhos, expondo-os às drogas, ao sexo e à prostituição, à violência, à morte (muitas
vezes a todos de uma só vez). E devo admitir que é, sim, no mínimo, difícil ler sem tirar
momentos para recuperar o fôlego. Ainda assim, mesmo que seja abrupto ou exagerado, não
me parece nem um pouco caricato; ao contrário, é preciso. Afinal, seria muito cômodo dizer
daqui, do aconchego do meu lar, que essa não era e ainda é a realidade perfurante das ruas e
do abandono.
Em outras vezes, a obra nos lembra que aqueles personagens são apenas crianças – e
crianças marginalizadas, pois usar “marginais” aqui seria um erro grotesco. No
surpreendentemente triste “As Luzes do Carrossel”, vemos aqueles mesmos malandros de uma
página atrás rendidos aos cavalinhos de um carrossel na praça. O leitor é forçado a acreditarnovamente na ingenuidade infantil dos Capitães, e foi o que aconteceu comigo. Fui
acometida pela compaixão e me recordei do ódio de Sem-Pernas, uma criança que sonha com
uma figura materna que o levasse para ver as luzes de todas as cores do brinquedo.
Se, antigamente, o livro fora censurado por ser “objeto de propaganda comunista” (o
que, se não tomarmos cuidado, passará a ser comum novamente), talvez hoje o seria devido a
seus temas “pesados” demais. Uma geração que se sente desconfortável em falar sobre
assuntos difíceis definitivamente não está pronta para o soco na cara que é o “capítulo”
Docas. Não estou dizendo – e longe de mim afirmar – que tudo aquilo presente ali é
necessário, coerente ou até de bom tom. Porém, é sim, e lamentavelmente, real… Ler aquele
episódio me causou um nó na garganta, daqueles que sentimos repulsa ao tocar nas páginas…
Entretanto, ler Capitães da Areia requer um exercício mental do leitor, não basta vilaniza-los!
O livro nos grita isso o tempo inteiro, assim como nos pergunta: isso teria acontecido se a
situação fosse outra? É inegável que diversos crimes e violências seriam evitados se aqueles
meninos não vivessem ao léu: sem instrução, sem família, sem esperança, sem comida.
Dito isso, partindo de um pressuposto crítico e da relação automática que meu cérebro
foi fazendo durante a leitura, o que eu disse até aqui não lhe soa nem um pouco familiar?
Seria ótimo se os absurdos presentes no livro e a enumeração que fiz acima fossem apenas
ficção ou, ao menos, estivessem aprisionados no passado, lá em 1937, mas sabemos, nós mais
que muitos outros, que essa não é a verdade… Estamos a quase um século depois do
lançamento da obra, mas, mesmo assim, na segunda-feira, a caminho da faculdade, eu lhe
garanto que verá – se não se esforçar para não vê-los – os nossos Capitães do Asfalto.
Aqui, nesta cidade desprovida de mar, nossos capitães habitam os viadutos, ocupações
e as calçadas pelas quais andamos de cabeça erguida todos os dias… No livro, a beleza de
Salvador alivia, ainda que pouco, o peso do que se lê. A riquíssima cultura, tão bem retratada
pelo autor, é um abraço reconfortante e faz com que a realidade seja mais palatável. “Mas na
rua num é não”. Na cruel São Paulo, cidade fantasma e inabitável, crianças e adultos são
empurrados para a sarjeta ao passo que o são para a malícia e para o crime. Talvez, a caminho
da Sanfran, você não esbarre com um moleque de 7 anos maltrapilho, mas com um senhor e,
se a idade era o único fator que lhe incomodaria, você se acostumou com o absurdo, caro
leitor. Leia Capitães da Areia imediatamente para sair da inércia! (Digo o mesmo para quem
já cansou desse assunto e para quem o acha redundante, crônico ou infantil).
Aqueles que gastam saliva e tempo falando a respeito da escrita cheia de oralidade do
autor (coisa que muito me encanta, na realidade) subestimam, ou deixam de notar, o peso da
narrativa e do tema escolhido aqui. A obra não tem a pretensão de ser um clássico cult
favoritado por jovens paulistanos de humanas metidos a besta – entre os quais me incluo –,
mas é uma denúncia que não foi plenamente ouvida até os dias de hoje!
A obra exemplifica com maestria que a luta contra a criminalidade não é suficiente
nem mesmo inteligente. Porém, essa tem sido a “solução” há quase um século. Por fim, lhes
deixo aqui uma indagação tal qual a que abre este texto: cabe a quem resolver essa cruel
situação na contemporaneidade e na vida real? Aos guardinhas estáticos da Sé? Ao Estado
desajeitado que manda sua força na esperança de que suprima alguns? À polícia violenta que
agrava o problema? Aos ministros, dos quais alguns frequentam estas mesmas ruas a caminho
da Gloriosa? Aos singelos alunos de direito e suas extensões? À provisão divina? Esta que vos escreve sofre, pois não detém a resposta e apenas espera que a Bahia tenha feito um
trabalho melhor que o nosso…
P.S.: Aliviando um pouco, indico com veemência que leiam, pois encontrarão tudo que
escrevi acima, de fato, mas também desfrutarão de uma escrita petulante, do jeito mais
elogioso! Sem falar que é um refresco se deparar com personagens comendo feijoada e
cocada, em vez de mac and cheese. Viva a literatura brasileira e baiana!
P.P.S.: Gostaria de indicar também um livro chamado Quando a Luz Apaga, do Gustavo
Ávila. É um thriller sobre o desaparecimento de moradores de rua no centro de São Paulo, (mas é muito mais, prometo).