Giovanna Giana.
A saga distópica Jogos Vorazes, produzida pela escritora e roteirista estadunidense Suzanne Collins, teve seu primeiro livro publicado em setembro de 2008 e hoje conta com uma série de cinco livros, dos quais quatro já tiveram adaptações cinematográficas aclamadas pela crítica por refletirem com fervor os conteúdos das obras escritas. A saga se passa no Estado soberano de Panem, que é dividido em doze distritos totalmente controlados, empobrecidos e explorados pela Capital, onde o poder se sedia em meio a elite metropolitana de uma cidade altamente tecnológica. Nesse sentido, a problemática da saga desenvolve-se a partir dos chamados “jogos vorazes”, no qual uma menina e um menino de 12 a 18 anos de cada distrito são sorteados para lutar até a morte – com direito até a ilustre presença dos telespectadores da Capital.
Por este viés, a Suzanne Collins brilhantemente desenvolve a envolvente protagonista Katniss Everdeen, tida como uma figura paradoxal durante a trama. Nesse sentido, Katniss não apenas protagonizou os Jogos ao se oferecer como tributo para salvar uma irmã Prim, como inaugurou uma forma de resistência para uma comunidade já exaurida pelo conformismo da exploração: nascida para além do heroísmo idealizado em narrativas, a primogênita Everdeen construiu uma resistência silenciosa marcada empatia e pelo instinto. Durante toda a trama, Katniss luta não somente pela sua sobrevivência na arena mortal, mas pela humanidade e redução do espetáculo performático e sádico promovido pela Capital.
Através da resistência silenciosa promovida e drama social vivenciado pela Katniss, a Collins alcança uma formulação perspicaz que leva seus leitores a entrelaçar as críticas sociais contemporâneas ao drama íntimo vivenciado pela jovem protagonista. Para além disso, Suzanne Collins utiliza suas obras da saga como uma denúncia de um poder perverso que se sustenta não apenas pela exploração de classes sociais e espetacularização da violência, como pela cumplicidade do público – o famoso dar palco para maluco que é destacado em todas as obras através da ausência de movimentação social e presença intrínseca ao conformismo com a dominação desumana ocorrida. Assim, a escritora constrói não apenas uma arena onde jovens são obrigados a matar para viver, ela oferece um espelho que seus leitores são convidados a verem: o que há em nós de expectador passivo, decúmplice do jogo, as decisões soberanas tomadas por aqueles que nos representam? Quão cúmplices somos das entranhas das desigualdades sociais por um conformismo e exaustão provocados por já estarmos entre essas desigualdades?
Para além das críticas sociais, a Suzanne Collins em certas tensões filosóficas e momentos de “vida ou morte” cede à promoção do que é um drama juvenil “comercializável” e sintetiza grandes questões a dilemas sentimentais vivenciados pelos jovens do drama. Por este viés, o leitor é apresentado ao drama amoroso experimentado pela Katniss Everdeen e seu companheiro de arena e distrito Peeta Mellark em meio ao caos de tentar sobreviver. No entanto, a Collins brilhantemente consegue entrelaçar romance e luta social no final do primeiro volume das obras, ao colocar os dois jovens supostamente apaixonados para pressionar a Capital a modificar suas regras autoritárias dos Jogos para que os telespectadores pudessem acompanhar um romance pós-arena entre Katniss e Peeta. Desse modo, toda a saga, mas em especial a trilogia, em meio a construção de um ritmo comercial comum em tramas juvenis, ainda consegue resgatar aspectos essenciais da revolução impulsionada no decorrer da obra e criticar que a corrupção de grandes movimentos tende a repetir os vícios que antes eram combatidos.
Portanto, Jogos Vorazes é, na verdade, um grito em meio ao ruído e um claro convite aos leitores à lucidez e atenção em meio a existência de uma sociedade e sistema econômico que transforma dor em espetáculo e rebeldia em produto. Assim, saga de Jogos Vorazes não é apenas uma coleção juvenil de distopia com elementos genéricos de ação e romance, a saga é, para muito além disso, um espelho incômodo a sociedade contemporânea que transforma dor e poder em entretenimento; que resguarda-se ao conformismo e não resiste contra o que lhes indevidamente imposto. Para além de uma heroína que o público quer assistir, a Collins abre uma ferida desconfortável de olhar-se, pois vai para além de uma mera distopia e adentra o mundo real, ao escancarar que, enquanto existirem pessoas para aplaudir, os jogos continuarão, quaisquer sejam eles.