O Deserto dos Tártaros

Henrique Nunes de Araújo

“O Deserto dos Tártaros” é o tipo de livro que impacta qualquer leitor do século XXI, uma vez que os tempos atuais são marcados pelo imediatismo, sob o ímpeto do desenvolvimento das tecnologias e das redes sociais virtuais. Assim, uma característica da contemporaneidade em que estamos inseridos é a pressão: de se desenvolver profissionalmente de forma rápida, de ganhar dinheiro precocemente, sair da casa dos pais cedo, de encontrar o amor verdadeiro. De – no fim das contas – ter a “vida plena”. Ao mesmo tempo, muitos se acomodam, esperando que os ventos do futuro cheguem naturalmente, sem esforço pessoal. É nesse contraste que se faz presente a chave da frustração do ponto de vista temporal que marca o indivíduo comum – e principalmente jovem – do presente século: o eterno aguardar de grandiosos eventos, como se a vida encarregasse para todos um “caminho natural”: trabalhar, viver um grande amor, ter filhos, possuir sucesso e, finalmente, morrer de forma realizada e plena. Mas e se tais eventos nunca se concretizarem? É aqui que entra a magia da obra de Dino Buzzati, à medida que, entre a pressa e a inércia, cresce uma sensação de espera permanente, como se a vida plena estivesse sempre adiada para o futuro.

Tendo essa perspectiva, no livro, Giovanni Drogo é retratado como um jovem militar que adentra no isolado Forte Bastiani logo cedo, com seus 20 anos, com a esperança de que um dia se tornaria um grande e reconhecido oficial, referenciado na Itália e cercado por grandes amores. Mas para isso, tinha em seu pensamento de que isso só seria possível caso ele abdicasse de parte da sua vida em prol dessa busca, estando preso ao Forte esperando uma eterna batalha iniciada por parte dos soldados do norte – o fator que garantiria seu sucesso enquanto pertencente ao Exército. E o problema entra aqui: essa guerra, que Drogo deposita tudo e a centraliza em sua vida como chave que abriria todos os seus posteriores passos em sua vida, nunca de fato acontece – ou pelo menos não da forma como ele gostaria, já que os inimigos do norte só efetivamente marcaram presença e guerrearam em um momento em que Giovanni estava muito fraco e à beira da morte, o que faz com que ele não participe da batalha quando ela finalmente chega. O “ponto-chave” da frustração de Drogo é que seu aguardo perdurou durante de 3 décadas, ou seja, o protagonista ficou na “eterna” espera de algo que nunca de fato se materializou na vida dele e como ele gostaria: lutando no campo de batalha.

Essa dimensão simbólica do romance é o que o torna tão atual, pois o Forte Bastiani não é apenas uma fortaleza militar, mas sim a metáfora do lugar onde muitos escolhem se prender, pois acreditam que a vida só realmente começa a partir da ocorrência de algo extraordinário. Já o deserto, que compreende cenário que cerca o Forte, vai para além da mera ameaça externa que nunca se concretiza: representa, no fim das contas, o gerador do vazio interior que tortura quem decide esperar demais. Nesse sentido, a grandiosidade de Buzzati reside na demonstração de que a passagem do tempo é imbatível, pois Giovanni Drogo acredita que tem todo o futuro pela frente, mas, quando tarde demais percebe, sua juventude foi consumida pela expectativa. Portanto, ele descobre que a glória tão sonhada nunca chegou, e que sua existência foi marcada pela eterna paralisia da espera, e não por escolhas ativas.

No fundo, a tragédia de Drogo não é tão particular e peculiar assim: pelo contrário, ela é atual ao passo em que há, na contemporaneidade, o conflito entre a pressa e a espera. Assim, o Forte Bastiani e o deserto não são meros cenários militares, mas sim símbolos de um tempo que, sem se importar, se esvai. Tendo isso em vista, a verdadeira crueldade da obra está na identificação que provoca com o leitor: cada pessoa, ao acompanhar a jornada de Drogo, é levada a se perguntar se também não está rente à mesma espera eterna e passiva.

Por fim, a tortura existencial do livro não está apenas no destino de Giovanni, mas sim no fato de que o leitor pode se ver nele em variados cenários e expectativas. Todos já esperamos algo – uma promoção, um grande amor, um reconhecimento, etc – acreditando que o “momento certo” viria, numa ideia pautada na crença de há uma passagem natural na vida de qualquer pessoa, em que todos passarão pela mesma coisa, alimentando a percepção de que tais eventos são simplesmente automáticos. Apesar disso, a maior dor do livro não é se questionar se estamos vivendo como Drogo, esperando inutilmente algo que nunca chega, mas sim perceber que a espera pode nos consumir de tal modo que não é mais possível lutar pela concretização de algo, à medida que pode-se inferir que o tempo nos venceu de forma que uma eventual reação ativa em busca de um grandioso evento que desejamos se torna inútil: foi assim que Drogo, doente, se viu no fim de sua vida, estando velho e incapaz de participar da batalha que esperou durante décadas. O livro, portanto, é muito pessimista ao demonstrar cruelmente que o tempo, quando ignorado ou adiado em nome de expectativas, pode nos vencer antes mesmo de podermos lutar por aquilo que um dia sonhamos viver.

Passagens que me marcaram:

“Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte das suas vidas.”

“Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem.”

IX: “Tarde demais, meu filho, precisava ter pensado nisso antes”.

X: “Só muitos meses mais tarde, olhando para trás, reconhecerá as míseras coisas que o ligam ao Forte”.

XIV: “’Mas são jovens’, pensava, ‘e para eles ainda há tempo.’”.

XXI: “Ilude-se com uma gloriosa desforra a longo prazo, acredita possuir ainda uma imensidão de tempo disponível, renuncia desse modo à mesquinha luta pela vida cotidiana. ´Chegará o dia em que todas a contas serão generosamente ajustadas’, pensa”.

XXVII: “Dia após dia, Drogo adiava a decisão [de abandonar o Forte]; de resto sentir-se ainda jovem, só 25 anos”.

idem: “Esperou não enxergar nada, que a estrada estivesse vazia, que não houvesse nenhum sinal de vida; era o que Drogo desejava para si mesmo, após ter consumado a vida à espera do inimigo.” → Contexto: Drogo estava indo embora do Forte – que presenciava a chegada do inimigo – para se tratar da doença que o mataria.

Último parágrafo do XXX, com Drogo na casa de repouso à espera da morte: “Fazendo força, Giovanni endireita um pouco o peito, ajeita com a mão o colete do uniforme, olha ainda pela janela, um brevíssimo olhar para sua última porção de estrelas. Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *