Laura Palermo Baraldi
“Foram os soldados que se rebelaram para tomar o poder. Você também viu. Bateram e apunhalaram as pessoas em pleno dia, mas não bastou, atiraram nelas. Foram eles que mandaram fazer assim. Como podemos chamá-los de nação?”
Atos Humanos (2021), de Hang Kang, é uma obra fundamental que sintetiza simbolicamente luto, memorial e denúncia. A aproximação com as vítimas é concretizada pela autora através da utilização da narração em segunda pessoa, nos colocando lado a lado com a experiência da violência política como testemunhas convocadas a ouvir as vozes dos vivos e dos mortos. A ponte criada por Kang é intermediada pelo narrador ôhmico, um ser onipresente semelhante a Kronos, responsável por deslocar o leitor de sua função primária para uma nova posição: aquele que compartilha da memória. Assim, o massacre de Gwangju é o ponto de partida, o palco que apresentará as diversas histórias — transfiguradas pelas agressões física, moral e espiritual — que resistiram à inércia do silêncio e ao esquecimento.
O enredo é baseado no trágico fenômeno que assombrou a Coreia do Sul em maio de 1980. Tropas foram enviadas para reprimir manifestações pró-democracia durante o mandato de Chun Doo-Hwan. Dentre as várias atitudes de repressão, com base no endurecimento da lei marcial, foram incluídas a censura à imprensa e o fechamento de universidades e sindicatos. Embora a maior parte da mobilização social se concentrasse em Seul, Gwangju detinha um largo histórico de resistência principalmente pelos estudantes da região, da qual era constantemente negligenciada pelo governo pela falta de investimentos na infraestrutura local. O número de vítimas presentes na linha de frente do exército civil varia de centenas a milhares — entre presos, desaparecidos e mortos, e em alguns casos, sem identidade confirmada.
A descrição visual acerca da brutalidade punitiva e homicida, praticada pela legitimação do Estado e transmitida pelo narrador, torna a leitura um exercício paradoxal. Nós, leitores, somos testemunhas dos rastros mortíferos da negação do direito à vida, à igualdade jurídica e à liberdade admitidos pela supremacia militar, ao acompanharmos as trajetórias das personagens estaríamos descumprindo a “lei” dentro do contexto apresentado ao adentrarmos à consciência daquelas, sob a ação do tempo-narrador, que daria voz à luta e à resistência. Por outro lado, estaríamos rompendo com o “pacto do silêncio” imposto pelas forças superiores e efetivamente relembrando o regime invasivo da opressão, presente na trajetória coreana em diversos momentos da História, tal como na divisão da península após a Segunda Guerra Mundial — responsável pela polarização global tanto do Ocidente, quanto do Oriente — entre Estados Unidos e União Soviética.
O narrador em segunda pessoa ora dá espaço para as próprias personagens expressarem suas memórias, dores e transformações, ora assume a voz que dialoga, e nos coloca na posição daquele que acompanha de perto os hematomas intransponíveis do tecido memorial coletivo da tragédia. Hang Kang não nos poupa: a autora desenha os detalhes para além da materialidade da escrita, delineando as facetas abstratas dos sentimentos do medo, da fúria, da vergonha, da tristeza, e da saudade presentes em cada alma, habitada ou desabitada, que se comunica com as lembranças embaralhadas no corpo aprisionado da civilização.
O que mais me surpreendeu, no entanto, não foi apenas o retrato pretérito do fenômeno da morte, mas a aparição insistente do tempo presente. A autora nos traz a oportunidade, pela escolha da divisão entre o acontecimento do massacre e os coágulos sociais décadas depois, de nos atentar ao remendo dos pedaços da vida que foram rasgados
pelo corte da supressão. Nesse sentido, os traumas permanecem pulsantes. O tempo não poupa ninguém. Sunjoo Im, jovem sindicalista e trabalhadora, acabou sendo presa e torturada pelos soldados, reaparecendo vinte anos depois trabalhando discretamente no secretariado de uma pequena organização. Convidada a ser uma das testemunhas na pesquisa do professor Yoon, responsável por investigar um grupo de soldados civis que sobreviveram aos ataques
militares, Sunjoo entra em um dilema introspectivo ao relembrar os episódios de violência tanto da operação militar, quanto da prisão. As feridas permanecem, por dentro e por fora. A narrativa então levanta as seguintes reflexões: seria o tempo se redimindo com a protagonista, dando a oportunidade dela mesma transpassar o impacto nocivo dos traumas que foram colados à força na sua pele e no seu espírito? Poderia a nação redimir as dores, os pesadelos, a solidão em meio à mutilação da própria existência? E, afinal, a memória seria suficiente para alguma forma de redenção diante da crueldade humana?
Talvez ela seja o perdão da morte. Em Atos Humanos, uma das vozes mais marcantes é a do adolescente Dongho, de apenas quinze anos, presente nas primeiras páginas do livro. Ele permanece em um dos ginásios que recebiam os cadáveres dos civis, realizando diversas tarefas de limpeza, catalogação e ritos de passagem (com materiais improvisados: garrafas e tocos de velas apagada) a fim de preservar o respeito pelos mortos, facilitando o reconhecimento das famílias e garantindo uma passagem digna e menos traumática. Décadas depois Dongho aparece sob a voz de sua mãe, sublinhado e potente, no último capítulo. Viúva e com os filhos já adultos, ela relembra as memórias da família ao mesmo tempo em que relata as mudanças alheias no tempo presente. A rua da sua casa é reformada; a mesma ruaem que ela passeava com Dongho quando criança. Dessa forma, o paralelismo entre as lembranças do filho pequeno, os últimos momentos de Dongho e o início da adolescência (instantes anteriores ao massacre) com a reforma da calçada, se torna uma metáfora da tentativa de cicatrização. O conforto expresso pelo cimento quente, e também pelos raios de sol, simbolizam a contraposição da dor do passado com a esperança do presente. A mãe de Dongho não recorda apenas o filho: ao citar os amigos Jungdae e Jungmi, desaparecidos durante a tragédia, ela impede que sejam apenas nomes enterrados sob a terra: eles ganham corpo, sangue, ar e vozes. Em outras palavras, o manto da memória que protege as circunstâncias da inocência do filho morto, representado pelo cimento, é além de uma metáfora para a aceitação do luto. É uma tentativa da cicatrização dos traumas da família: o
laço que ata a dor do fim e a dor do recomeço. Dessa forma, a narrativa recusa o esquecimento. A mãe reinscreve todos eles na memória da comunidade, sugerindo também a reconstrução coletiva da nação.
A voz da mãe de Dongho ecoa a voz de Eunice Paiva, retratada no filme Ainda Estou Aqui (adaptado em 2024 do livro de Marcelo Rubens Paiva) ao testemunhar e ressignificar a trajetória da própria família após o desaparecimento do marido durante o período da ditadura militar no Brasil. O que essas duas obras têm em comum é o papel exercido pelas mulheres que sofreram a perda de um parente (seja um filho ou um companheiro) e que utilizam do empréstimo da voz das vítimas para perpetuar tanto a lembrança da violência exercida por um poder oligopólico que dita quem vive e quem morre, quanto dar continuidade à existência interrompida das pessoas que não estão mais entre nós, mas que estão em nós. Nessa lógica, a dor feminina se transformou em resistência. Elas detêm a tarefa de manter viva a memória silenciada pelas forças autoritárias. Essas mulheres assumem a responsabilidade pela família,
em vários sentidos. A família é responsável pelo halo dos princípios e da responsabilidade, sendo também nosso exercício para a vida social; mas quando os problemas públicos interferem violentamente na esfera privada, ultrapassando as barreiras constitucionais e humanas, toda a nação se fragmenta. (Poderia tentar discorrer sobre o conceito de nação, mas seria necessário pelo menos quatro anos de repertório teórico…)
A obra de Hang Kang ganha ainda mais peso ao saber das suas raízes em Gwangju, concentrando toda a sua sensibilidade na expressão do ser humano na sua forma mais crua possível, isto é, privado da liberdade de viver, castrado em sua cidadania e em sua voz. A autora desnuda a frangalhos a obscuridade do homem, revelando em contrapartida a vulnerabilidade individual alheia diante do poder e da política. No fim, somos carnes comconsciência, somos frágeis como bonecos, mas também fortes pela grandeza da história e da memória: e assim vencemos a morte, mesmo que ela seja imposta por forças da espécie.