Guilherme Galina
O AUTOR
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu em 1821 e levou uma vida consternada, sob a qual vivenciou dramas familiares, vícios e eventos históricos de larga magnitude. Dedicou-se, desde os primórdios da sua juventude, à literatura: do romantismo, em seus escritos iniciais, à produção “ficcional-filosófica”, já na maturidade, Dostoiévski se tornou sinônimo de singularidade. Eu hei de analisar, nesta breve resenha, “Um jogador – Apontamentos de um homem moço”, criação pela qual tenho tremenda afeição, pois a considero a responsável por me introduzir à literatura dostoievskiana – título este que, àqueles que desejam melhor conhecê-lo, constitui uma ótima e plausível iniciação à obra do autor russo.
CONTEXTO
Não bastasse a profundidade do título, Dostoiévski escreveu “Um Jogador” sob circunstâncias que são dignas de outra grande narrativa. Jazia, no ano de 1866, a aposta que, outrora, firmara com o seu editor, F. T. Stielósvki: escrever um determinado romance, com um específico número de páginas, até 1º de novembro daquele mesmo ano; o descumprimento da aposta, por sua vez, condenaria Dostoiévski à transferência dos seus direitos autorais ao editor por nove longos anos. Trabalhava o autor, nessa época, naquela que é considerada por críticos como o seu magnum opus: Crime e Castigo. Interrompida, dedicou-se a escrever, durante pouco mais de vinte dias, a respeito de uma ideia de três anos antes – e é à luz de um lance, então, que surge o título que aqui se discute. Constam nos seus dizeres biográficos, ainda, que “Um Jogador”, embora fruto da abstração do eminente escritor, contou com a participação de Anna Grigórievna Snítkina, taquígrafa – e futura esposa do autor – responsável por registrar a genialidade de Dostoiévski.
Irônico é, em certo grau, que um título sobre um jovem viciado em jogatina tenha a sua gênese, justamente, numa aposta – essa, contudo, em plano terreno.
ENREDO
Relatos em primeira pessoa acerca do regresso a Roletenburgo. Confabulações que orbitam as suposições de um capital por alguém encontrado e a tão logo subordinação às ordens do General. Citam-se os mais diversos – e complicados – nomes russos; entre eles, um inglês, um francês e os dizeres “[…] deu-me a compreender que eu devia passear com as crianças no parque, o mais longe possível do cassino”. Eis o início do romance: de artigos indefinidos a interrogações que se agigantam parágrafo a parágrafo, o leitor não é situado, dificilmente entende o que ali se passa, tampouco compreende quem é o narrador-personagem que lhe conduz pela “cidade da roleta” – mas que aqui menciono, a ser tardiamente revelado, Aleksiéi Ivânovitch.
Os capítulos iniciais retratam, de maneira pitoresca, as relações interpessoais dos personagens que permeiam o enredo, fazendo-se necessárias para a compreensão dos conflitos que emergem conforme o passar das páginas. Demais, os personagens revelam ser, em certa medida, as metáforas de uma das críticas dostoievskianas ao desenraizamento da sociedade epocal, a qual encontrou, no desregrado louvor ao capital e no concomitante desprezo pela tradição, a sua nova identidade. Nessa toada, outro nome de grande relevância para a trama é citado: Polina Aleksândrovna. Logo na primeira página, ela questiona a demora de Aleksiéi em retornar e, pouco se importando com a sua resposta, deixa o recinto – essa que, na minha leitura, é a cristalização da truncada e inconclusiva, mas indelével relação que há entre eles. Ivânovitch, já no segundo capítulo, vê-se incumbido de uma desagradável – como ele próprio aponta – responsabilidade: adentrar o cassino; o desconforto, todavia, não decorreu da jogatina, mas da necessidade de fazê-lo por Polina, que confiou a ele a urgência de conseguir dinheiro a qualquer custo.
Capítulos à frente, o desenrolar da narrativa se apoia sobre outros personagens. Francês misterioso e, à primeira vista, desconhecido pelo narrador, Des Grieux age com a mais sutil intimidade quando com Polina, desconcertando-a de tal forma que Ivânovitch – jovem, mas não ingênuo – a questiona acerca das minúcias que permeiam a tão enigmática relação. Ela, inteligentemente, toma para si o charme francês sem alarde e nada revela ao russo, fomentando entre eles uma verdadeira disputa pelo seu coração. Antonida Vassílievna, comumente designada como “avó”, é, neste caso, substantivo próprio que vem, frequentemente, acompanhado pelo adjetivo capitalista, numa clara referência ao tipo ideal da matriarca endinheirada – fato esse, vale dizer, sobre o qual gravita a quase totalidade dos eventos –, de modo que o seu adoecimento condena a família não só ao declínio, como à digladiação, entre os próprios consanguíneos, pela farta herança. Pinta-se a cena: o afeto que sucumbe ao cifrão.
Em meio a efêmeros rios de dinheiro que tão logo se secam e à ruína de laços familiares que velozmente se esvaem, segue-se a narrativa. Aleksiéi Ivânovitch se divide entre tentar se manter empregado, atendendo às ordens do General, assim como tendo de se curvar perante os mandos e desmandos de Des Grieux, e, aos brados da avó, comunicar ao crupiê quantos luíses de ouro serão apostados. À medida que o enredo toma forma, o leitor não mais se encontra desnorteado, mas, ao contrário, faz-se ímpeto de reflexão; é tão cuidadosamente costurado à teia de fatos e envolvido pelas personagens que assume, finalmente, as rédeas da leitura, torna-se seio da mais refinada interpretação e visa a compreender, em sua inteireza, a trama que Dostoiévski, outrora, eloquentemente, narrou com a própria voz.
ANÁLISE
A maturidade dostoievskiana é intrinsecamente caracterizada pelo profundo desenvolvimento dos aspectos psicológicos que ele atribui aos personagens dos seus escritos. Da tortura mental de Raskólnikov, em Crime e Castigo, às divagações de Karamázov, em Os Irmãos Karamázov, Dostoiévski dedica longos parágrafos às formulações inteligíveis dos seus personagens e, com Aleksiéi Ivânovitch, em Um Jogador, não seria diferente. Ressalto, aqui, uma opção peculiar do autor: ao contrário daquilo que se idealiza como “padrão literário” – se é que ele existe –, a construção do jovem preceptor e das suas faculdades mentais não ocorre gradualmente, mas, em verdade, dá-se de tal forma que, já à luz do primeiro capítulo, o russo coloca o leitor frente à conturbada mente do protagonista.
Embriagado por um amor incerto e viciado no girar da roleta, Ivânovitch se vê condenado a uma desprezível realidade, na qual a sua paixão por Polina se torna mero objeto de manipulação pela própria musa, bem como as idas ao cassino são as fugas da realidade por ele almejadas, e é daí que decorrem os constantes delírios que revelam a incômoda perturbação que o acompanha do início ao final do enredo – há certas passagens em que a verossimilhança com que o autor retrata o interior dos personagens é tamanha que a leitura delas se torna, não nego, desconfortável.
Aponto um trecho: “Sim, às vezes, a ideia mais absurda, a mais impossível na aparência, fixa-se tão fortemente em nós que passamos a aceitá-la como algo realizável… Mais: se essa ideia se liga a um desejo intenso, apaixonado, aceitamo-la, por vezes, como algo fatal, indispensável, predestinado, como algo que não pode deixar de ser e acontecer! É possível que haja nisso algo mais, alguma combinação de pressentimentos, algum
extraordinário esforço da vontade, um envenenamento por meio da própria imaginação, ou mais ainda – não sei. Mas, nessa noite (que não esquecerei em toda a minha vida), aconteceu-me um fato milagroso. Embora ele seja confirmado plenamente pela aritmética, continuo a considerá-lo milagroso até hoje. E por que, sim, por que tal certeza estava tão profunda, tão intensamente enraizada em mim, e de tão longa data? Certamente, eu já pensava nisso – repito-o a vocês – não como um caso que pode acontecer como outros (sendo, por conseguinte, possível também a eventualidade contrária), mas como algo que não pode em hipótese alguma deixar de acontecer!” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 166).
O excerto acima alude a um dos aspectos centrais da narrativa, o qual decorre do passeio em Schlangenberg – mas irei poupá-los do spoiler. Aquilo que acredito ser digno de admiração, de fato, é a fidedigna construção do pensamento, marcado por hesitações, apostos deveras expressivos e, em outras passagens, anacolutos e hipérbatos; o conjunto desses elementos, somados à capacidade de Dostoiévski em transpor o inteligível ao sensível, culmina, inevitavelmente, na complexidade de divagações invariavelmente humanas sob a forma de parágrafos. Vem-me à mente, vale dizer, a famosa frase de Wittgenstein, em seu Tractatus, “DieGrenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt” (“os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, em tradução livre). Se a afirmação do alemão procede, Dostoiévski, sem sombra de dúvidas, tinha um mundo, mundo, vasto mundo à sua disposição; ademais, dessa imensurável habilidade com os vocábulos deriva, precisamente, a possibilidade que se tem, na literatura dostoievskiana, de explorar o íntimo de cada um dos personagens, tal qual tivessem encarnado em carne e osso.
Dostoiévski lança mão de uma profundidade psicológica sem igual e, sobretudo, proclama tal dimensão por meio de períodos admiráveis, dotados de extensas orações que, como unidades de sentido, carregam, cada qual, um microcosmo de signos, de forma a complementarem-se; e, uma vez justapostos, fundem-se num amálgama de sentidos, que originam o macrocosmo que é a narrativa. Contudo, à medida que complexa é a sua produção, igualmente custosa e árdua é a sua transposição a outros idiomas. Assim, não se pode ler Dostoiévski em língua portuguesa sem mencionar Boris Schnaiderman, sendo, pelo menos em língua lusófona, figuras indissociáveis. Este último a que me refiro é um dos maiores, senão o maior, tradutor do gênio russo, expoente de uma vida dedicada à Literatura. Uma vez que tratei da complexidade dos personagens em Dostoiévski, bem como da construção gramatical e semântica – esta como alicerce fundamental sobre a qual aquela se edifica –, é crucial mencionar, também, o esmero de Schnaiderman com a obra do russo, posto que o esforço por melhor traduzi-la é diretamente proporcional à diferença entre os – tão divergentes – idiomas, a fim de conservar os múltiplos sentidos que o texto carrega consigo, além de transmitir, com o maior grau de assertividade possível, a mensagem do autor.
O alvoroço característico das relações entre os personagens da literatura dostoievskiana não é alheio à realidade, tampouco irreal, isto é, não é fruto, unicamente, da abstração cognitiva do autor. Liubóv Fiódorovna Dostoiévskaia, em “Dostoiévski iv izobrajênii ievó dótcheri” (“Dostoiévski retratado por sua filha”, em tradução livre), relata que o pai, dentre os inúmeros percalços de que padeceu, como a morte da esposa e do filho, foi refém, ao longo da sua vida, do vício em jogos. Inevitavelmente, as circunstâncias do seu viver influenciaram, diretamente, a sua obra, de tal modo que alguns personagens compartilham de atributos semelhantes aos do autor, como é o caso de Aleksiéi Ivânovitch. A crítica, há tempos, almeja o consenso quanto aos traços autobiográficos de Um Jogador, colocando à prova evidências que corroboram com a tese. Todavia, como o próprio Boris Schnaiderman escreve no posfácio, reducionista é o crivo que atribui ao protagonista a inteira humanidade de Dostoiévski, ou, até mesmo, que confere à narrativa o relato de vida do autor – apoiando-se sobre o título “Vospominâmia” (“Reminiscência”, em tradução livre), de A. G. Dostoiévskaia, sua viúva.
Num contraponto, alguns comentadores, como Thomas Mann – sim, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor de “A Montanha Mágica” –, afirmam tratar-se de um romance deveras pessoal, no qual as vivências do protagonista perpassam por semelhantes vicissitudes das quais padeceu o russo, como o vício na jogatina – previamente mencionado. Faz-se interessante, em conformidade com tal possibilidade, analisar Dostoiévski e Ivânovitch como indivíduos situados, ainda que a existência deste decorra daquele e não o contrário, de tal forma que a tão subjetiva intimidade de que ambos dispõem inviabiliza, ao leitor, delinear a influência que as experiências particulares do criador causam sobre a criação, bem como a linha tênue que delimita o personagem como produto singular da abstração do autor, ou como singela transposição de si para o papel; em verdade, ouso dizer que jamais seremos capazes de circunscrevê-los, a nós restando, apenas, a simbiose autor-obra pela qual fluímos no decurso da leitura.
CONCLUSÃO
Concluo, não podendo ser de outro modo, com a recomendação da leitura de “Um jogador – Apontamentos de um homem moço”. A análise acima abrange apenas uma parcela das múltiplas facetas de que trata Dostoiévski e, além disso, petulância minha seria dizer que pude reunir, nesta breve resenha, a completude do gênio dostoievskiano. Deixem-se guiar pelos longos períodos e peculiares vocábulos do autor, bem como pelos devaneios de seus personagens tão bem concebidos, os quais, juntos, resultam em textos densos, íntimos e enigmáticos. A literatura russa, em linhas gerais, apresenta traços deslumbrantes e reúne magníficos autores, mas que, infelizmente, em razão das barreiras linguísticas e das poucas traduções, torna-se inacessível. Frente a isso, espero ter podido suscitar a fagulha, ainda que tímida, do interesse por um universo literário tão díspar, mas igualmente belo que é a obra de Dostoiévski e, em última instância, a literatura russa. Felizes os que leem.