Jantar secreto e a burguesia brasileira: a luxúria da morte

Giovanna Nascimento de Sant’Anna

Raphael Montes, um dos autores do livro que inspirou a célebre série “Bom dia, Verônica” da Netflix, é, sem dúvida, uma potência na literatura brasileira. Diferentemente dos clássicos europeus do gênero suspense, nos quais se tem uma visão essencialmente burguesa da realidade, a exemplo de Agatha Christie e Conan Doyle, Montes inova ao intercalar muito bem a crítica e o entretenimento em suas obras, tendo um viés social aparente. Além disso, o autor também estabelece um contraste com outros escritores de países colonizados voltados ao entretenimento: diferentemente da grande maioria, que tenta copiar o estilo europeu, Raphael busca um retrato essencialmente brasileiro em seus livros aproximando-se, com linguagem acessível e textos cativantes, da literatura clássica do país.

Nesse sentido, “Jantar secreto” se faz como uma das grandes obras-primas do autor. O livro retrata uma realidade clássica do país: jovens saindo de uma cidade pequena para uma das capitais mais ricas e poderosas do Brasil, sendo o Rio de Janeiro a escolhida pelo escritor. O grupo se desdobra para arcar com as despesas exorbitantes que Copacabana exige, em contrapartida aos seus escassos recursos. Contudo, quando aluguel vence por vários meses seguidos e pagar as contas parece uma realidade cada vez mais inatingível, os colegas acabam seguindo um caminho um tanto quanto peculiar para conseguir dinheiro: passam a organizar jantares secretos para a alta cúpula da sociedade carioca, os quais prometem exclusividade e diferenciação aos clientes, sendo divulgados na Internet.

A partir desse ponto, o rumo da história dos garotos se torna outro; a morte e a brutalidade se tornam parte do seu cotidiano, e eles acabam por descobrir matadouros humanos e redes de contrabando de cadáveres que seriam incapazes de imaginar em qualquer outro contexto. Junto a isso, se deparam também com a crueldade e a insensibilidade dos ricaços, a qual acaba por se misturar com a deles próprios em algum ponto da história.

“Jantar secreto” é um fenômeno por ser capaz de trazer uma crítica precisa à burguesia brasileira com uma linguagem acessível e uma narrativa cativante, buscando aproximar-se da população em primeiro plano e, em segundo, da academia. Contudo, isso não interfere no peso crítico-argumentativo da obra como costuma ocorrer em muitos textos voltados ao entretenimento, revelando a sagacidade e a capacidade de alcance de Montes.

Fugindo também do tradicional do gênero de suspense, o qual traz reflexões a respeito de que a maldade presente nas histórias seria fruto da natureza humana, o livro deixa bem claro que a brutalidade e a desgraça têm um tipo de raça, gênero e classe favoritos, não sendo aleatória e resultante de conflitos individuais, mas de desigualdades em escala socioestrutural.

Ao mesmo tempo, isso não faz com que as personagens se tornem meros tipos sociais de uma dualidade rasa entre oprimido e opressor, o que enfraqueceria o debate; os protagonistas estão muito mais próximo, socialmente, de suas vítimas que de seus clientes, mas, mesmo assim, preferem se aliar aos últimos. Essa contradição se estabelece como um forte retrato da classe média brasileira e aborda uma razão histórica da perpetuação da elite do país, o que complexifica a narrativa.

Em adição a tudo isso, a única aparente falta de verossimilhança da história acaba por ser esclarecida como intencional no final da obra, visando funcionar como pista, para o leitor atento, do desfecho da trama, bem no estilo Sherlock Holmes, o que fortalece o texto ao deixar clara sua coerência.

Além disso, o humor ácido é bem marcante no livro, o que traz mais jovialidade à trama, sendo muito condizente com seus protagonistas, e alivia um pouco o grande peso do tema central, além de humanizar os personagens e contribuir para sua complexificação, não limitando-os ao binarismo da bondade-maldade.

Entretanto, para um leitor mais sensível, o livro pode parecer pecar pelo excesso de violência e crueldade, o que é, contudo, um tanto relativo, já que isso dá, ao mesmo tempo, mais peso à obra, sendo importante para a construção narrativa. Entretanto, a crítica é válida, considerando que a brutalidade também é sensacionalista e apelativa, e pode também funcionar como um alerta de gatilho.

“Jantar secreto” pode ser uma boa opção para iniciar os fãs de suspense à leitura, já que equilibra bem entre o crítico e o atraente, evitanto o afastamento pelo entrave linguístico e a alienação pelo excesso de entretenimento de forma concomitante, o que agrega muito valor à obra. Além disso, para os leitores já “crescidos” também funciona muito bem, havendo, inclusive, para esses uma maior possibilidade de exploração das camadas do texto ao mesmo tempo em que o último flui com muita agilidade.

Raphael Montes é uma pérola da literatura nacional contemporânea, e “Jantar secreto” não decepciona ao ser submetido aos altos padrões presentes em outras obras do autor, mantendo o mesmo nível de consciência crítica, brasilidade e sedução. É impossível não identificar a realidade com a obra, o que provoca uma verossimilhança assustadora, daquelas de dar calafrios- e que é, no fundo, o que todo leitor de suspense procura.

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