Hoje é o primeiro dia da primavera e, para comemorar, pensei em escrever poesia. Não só pensei, não, mas planejei com antecedência, fiz inúmeros esboços, selecionei as mais belas palavras e incisivas metáforas para poder hoje proclamá-las. Dias a fio absorto da realidade, em que a vida sensível operou tão somente em segundo plano, para que, dessa vez, eu possa apreciá-la com mais delicadeza e sensibilidade do que na última.
Uma ode à primavera, às flores que desabrocham. Lindo, não? Divinos são Eros criador e Perséfone renovadora, graças aos quais contemplo as cores dos sempre tão novos lírios e mais uma vez espanto-me com seus deleitosos cheiros; graças aos quais os astros se alinham hoje — e só hoje — da mesma forma que o faziam há uma translação atrás e fazem com que suas bênçãos mais uma vez recaiam sobre as flores; graças aos quais existo e persisto sem qualquer resistência, sob a única promessa de que o amanhã mais uma vez será tão belo quanto todos os outros dias, senão mais.
O quão ansioso não estou pela primavera? Lembro-me bem das demais. Talvez não tão bem, não (pois os eventos concretos se confundem, em minha memória, com as tão abstratas — e graciosas — inflexões que não me escapavam então como não me escapam hoje), mas todas as coisas que em mim convectavam outrora ainda o fazem como se recente fosse. Minha experiência estética se confunde com o delírio do divino e a crudeza do real, sim, mas de que importa se, no lapso da subjetividade, tudo me vem como o mais puro fascínio?
Foi em uma primavera que eu primeiro amei; que não só escrevi mas também recebi cartas de amor; que me encantei pela carne e pelo osso, pelo real e pela ideia; que passei a dormir ansiando pela manhã e acordar ansiando pela noite; que vi beleza nas coisas ruins como nas boas; que figurei não só como amante, mas também como amado. Na primavera ganhei consciência, olhei no espelho e descobri que eu afeto o que está fora como o que está fora me afeta; ganhei minhas primeiras e inesquecíveis memórias, me senti criança sabendo disso, e o surreal transpôs o real — sem que, pela primeira vez, sentisse desespero ou confusão. Foi em uma primavera que eu soube que esta é a exata vida que gostaria de estar vivendo.
Pensei em escrever poesia, sim, mas não pude senão frustrar-me com a minha incapacidade linguística e imagética de formular cenários e invocar sentimentos sequer suficientemente aptos a dar vida àquilo que em mim há tanto tempo pulsa. Compulsão à repetição. Queria eu ser patrono da minha língua e trazer à tona novas palavras tão lúdicas quanto ‘apricita’ ou ‘inefável’, mas, na falta de êxito, conto com a universalidade do gênero humano para que eu seja, nem que de forma remota, compreendido.
Poético, sim, mas inelutável é a modalidade do visível e a efemeridade de tudo aquilo que é orgânico. Sexo verbal não faz meu estilo; não quero lembrar que eu erro também; não quero lembrar que eu minto também; não quero lembrar que em pouco tempo as flores vão declinar e, junto a elas, minha sujeição a tudo aquilo que, apesar de simples, é tão belo. Balada de amor ao vento.
Recuso-me a perturbar e dedicar as palavras arautas de toda minha subjetividade à calamidade existencial da qual desesperadamente evado a qualquer custo. De consciência pesada, busco conforto no calor de Deméter, mas olhos não tenho senão para o romântico florescer agraciado pela progênita. Desesperado, então, aceito conciliar-me com Dionísio, e sigo tão somente para ser oportunizado, mais uma vez, o vislumbre da Coroa Boreal.
Ó, deus, toque sua flauta, junte-me à etérea dança do cosmos, sirva-me a sagrada ambrósia, embriague-me de poesia e amor. Ó, Senhora dos Labirintos, Coroada entre as Estrelas, lance-me tua trama de afeto para que eu, errante, venha a conquistar a eternidade. Tu, divina entre as mortais, representação da minha vontade de potência e patrona da afirmação singular de mim sobre o mundo, lance-me o fio e possibilite-me formar alma suficientemente forte para suportar o absurdo reflexo do eterno retorno. Peço uma chance — uma só chance — para nadar contra as águas em que Teseu navegou, afirmando-me, mais uma vez, como o mais autêntico dos seres. Diga sim ao mundo e tome nas mãos o devir, pois diferente disso não poderia ser.
E, apesar de hoje ainda ser o primeiro dia da primavera, aproprio-me da sagrada cosmologia e da consagrada tradição filosófica para conciliar com o absurdo e convencer-me da possibilidade de encontrar-me, mais uma vez, com os sempre tão novos lírios, que não vão a lugar algum. Perséfone está aqui hoje como estará no último dia da estação e, enquanto isso for verdade, não posso senão preocupar-me com o novo e agradável absurdo da eterna primavera.

Pedro Tocci tem potencial para ser um dos maiores poetas dessa geração. Parabéns!